terça-feira, 6 de setembro de 2011

O luxo como “pequeneza”



A situação de pobreza sempre me intrigou, a miséria me chocava e eu não entendia. Sentia um certo constrangimento inexplicável do meu “falar correto”, das minhas roupas de marca, às vezes do meu tamanho, dos meus dentes impecavelmente tratados. Não que desejasse abrir mão da minha situação. Mas por quê a maioria das pessoas não tinha? Era uma sutil sensação de injustiça sem me sentir claramente culpado, apenas constrangido com o que pareciam privilégios nesses momentos, mas que tinham se incorporado em mim como o mínimo necessário.
            Não podia achar aquilo natural e inevitável, como me diziam e se acreditava à minha volta. Na verdade, fugia-se do assunto. Eu fui muitas vezes considerado um chato, fui evitado por vários grupos na adolescência, às vezes francamente hostilizado – não gostavam de mim. Tinha minhas boas relações, mas eram poucas e quase todas... como direi... bilaterais. Não fazia parte de grupos. Fora os esportes coletivos, claro. Aprendi aos poucos a ficar mais calado e prestar mais atenção – virtude que perdi de vista ao entrar na universidade e até hoje, vez por outra e apesar da vivência, me faz falta. Algumas vezes, consigo me controlar, mas nem sempre.
            Quando andei no nível da mendicância e vivi do que me era dado, encontrei gente boa e ruim em todas as classes, indiferentes e curiosos de todos os tipos. Mas era nítida a diferença de acolhimento entre os mais pobres dos pobres. Ali se dividem migalhas, com uma generosidade ímpar, quando se divide. A generosidade dos ricos, no mais das vezes, é à distância. Partilhei refeições feitas em latas de óleo sobre fogueiras, dormi sobre capim improvisado no cantinho da tapera, pendurado em rede, em caibros ou árvores, fui hospedado em palafitas sobre mangues, onde o banheiro é servido de um buraco no chão, pedaços de jornal enfiados num prego na parede de tábua e a gente escuta o barulho da merda caindo na água, lá embaixo.
            Boa recepção por parte dos que dispunham de sobras me deixavam reconhecido, agradecido, mas a recepção dos mais pobres me comovia. Tão pouco tinham, tão fácil dividiam... O dia seguinte pertencia a Deus e a luta era todo dia, sem feriado. Também senti a fome, vivi sem abrigo, como um aluno, atento, aprendendo, pesquisando à minha maneira, ouvindo as histórias, falando meu pensamento, reparando nas reações, na linguagem, absorvendo os códigos, percebendo os conhecimentos, as intuições e relações. Criei um grande carinho pelos sabotados, pelas pessoas em situação de fragilidade, uma ligação talvez moral, certamente afetiva, junto com a sensação de injustiça permanente, pedindo trabalho de reparação na estrutura social – a partir das raízes individuais internas para as externas, coletivas. Nasceu uma grande admiração pela resistência ao sofrimento, pela luta de sobrevivência, pelos saberes e sabedorias desenvolvidos quase por conta própria. Eu os sinto parte de mim, do meu grupo, merecedores de mais cuidados, pelos maltratos cotidianos impostos por essa estrutura social perversa.
            Certamente é por isso que me causa certo desconforto a presença, a proximidade ou a simples visão de luxo e ostentação. Uma espécie de constrangimento. Traz à lembrança a situação injusta, precária e abandonada em que vivem tantas pessoas, por um Estado que foi infiltrado, dominado por grandes empresas - as poucas pessoas mais ricas - e impedido de cumprir as leis mais básicas da sua própria constituição, na garantia de condições mínimas de vida com dignidade para sua população. O domínio das elites tornou o Estado criminoso, nos seus três pretensos poderes, e o colocou a seu serviço, eliminando direitos e roubando patrimônios públicos – o que é público é tratado como privado. Tenho verdadeira repulsa por privilégios, luxos e ostentações, embora não transfira essa repulsa às pessoas, apenas aos seus comportamentos e à sua indiferença. Meu desconforto é moral, causado pela situação, pela ligação direta da riqueza, da ostentação e do luxo com a criação da miséria absoluta, da sabotagem na educação, na informação, nos serviços públicos, com a falta de sentido na vida das pessoas – da miséria à pobreza e às classes intermediárias.
            Estes são meus sentimentos, meus pensamentos e minha visão de mundo. Não pretendo declarar verdades, nem tenho a expectativa de encontrá-los em outras pessoas. Se me desse ao trabalho e à arrogância de condenar comportamentos e valores dos quais discordo, viveria em conflitos pessoais inúteis, alimentaria sentimentos desagradáveis e nocivos – e não teria tempo nem espírito pra fazer os trabalhos que gosto e dão sentido à minha vida.
            Não recomendo nem pretendo voltar à situação de miséria onde, na verdade, nunca me senti. Eu pesquisava, aprendia, observava e absorvia o máximo possível. Desenvolvi afeto e solidariedade com aquelas pessoas em situação injusta. Não posso gostar ou desejar luxos, excessos, ostentações e desperdícios. Na minha visão, são expressões de grosseria moral e espiritual, de insensibilidade, de egoísmo, indiferença, enfim, de desumanidade, disfarçada com requintes de sofisticação. Para olhos mais solidários, de quem se sente parte do grande grupo humano ou além, da coletividade planetária, tais finuras e sofisticações são apenas uma capa frágil da sua real situação moral, de um ridículo inevitável e notória nocividade para a sociedade como um todo. Não se trata de condenar ninguém, mas de perceber com olhos próprios e refletir sobre o que se vê. E como e em nome de quê se vive.


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